sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
Em homenagem a amizade!
"Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se
vê! Dei-me conta, com uma intensidade incomum, da coisa rara que é a
amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A beleza
da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem
o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto:
a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...
Lembrei-me de um trecho de Jean-Christophe, que li quando era jovem, e do qual
nunca me esqueci. Romain Rolland descreve a primeira experiência com a amizade do seu
herói adolescente. Já conhecera muitas pessoas nos curtos anos de sua vida. Mas
o que experimentava naquele momento era diferente de tudo o que já sentira antes.
O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos
a vida inteira. A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo,
na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre.
Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar.
Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.
“Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava ‘Tenho um
amigo, tenho um amigo!’ Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada.
Estava morto de sono e adormeceu apenas deitou-se. Mas durante a noite foi
acordado duas ou três vezes, como que por uma idéia fixa. Repetia para si
mesmo: ‘Tenho um amigo’, e tornava a adormecer.”
Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa
em cuja companhia não é preciso falar. Você tem aqui um teste para saber
quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe causa
ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para
encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está
não é amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer, jogar ou tramar.
Até que tudo isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não
é amiga, terminado o alegre e animado programa, vêm o silêncio e o vazio - que
são insuportáveis. Nesse momento, o outro se transforma num incômodo que entulha
o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.
Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem
juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz
alegria independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda por
caminhos que não passam pelos programas.
Uma estória oriental conta de uma árvore solitária que se via no alto da
montanha. Não tinha sido sempre assim. Em tempos passados, a montanha
estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os
lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia ser
transformada em tábuas. Inútil para os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores de essências em busca de madeiras perfumadas.
Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou.
Por ser inútil, sobreviveu. Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes
se assentam sob a sua sombra e descansam.
Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil
eventualmente, mas não é isso que o torna um amigo. Sua inútil e fiel
presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de comunhão.
Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.
Rubem Alves
(Correio Popular, 1991 ou 1992)
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Rubem Alves
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
O tempo e as jabuticabas
" Contei meus anos e descobri que terei menos tempo
para viver daqui para frente do que já vivi até agora.
Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As
primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltavam poucas, rói o
caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus
lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis para discutir assuntos inúteis
sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade
cronológica, são imaturas.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de
secretário geral do coral ou semelhante bobagem, seja ela qual for.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma
tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito
humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se
considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a
dignidade dos marginalizados, e deseja tão somente andar ao lado de deus.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor
absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo. O essencial faz a vida
valer a pena. Basta o essencial!"
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